CURSO DE LITURGIA: AULA 02 – Liturgia nos primeiros séculos

“O caráter de convivência de um banquete era realçado precisamente pela ordenação oposta de lugares, isto é, todos os participantes estavam sentados ao mesmo lado a mesa” (Ratzinger – Introdução ao espírito da liturgia).

 

AULA 02

PLANO DE ESTUDO

-O culto no Antigo Testamento

– O culto na época do Novo Testamento

– A liturgia na era dos mártires

 

1 – O CULTO NO ANTIGO TESTAMENTO

No AT todo o culto do povo de Israel foi ordenado por lei divina. Os deveres múltiplos dos sacerdotes israelitas, bem como o modo de oferecer os vários sacrifícios, foram minuciosamente revelados por Deus a Moisés, que os fixou no Levítico.

 

O culto maior de Israel era a Páscoa, celebrada como um memorial, isto é, por meio de um rito que permitia, pela participação nele, a participação naquele evento recordado. Não se tratava de uma mera lembrança da libertação, mas de uma atualização e esse memorial era celebrado, isto é, expresso em sinais sensíveis, manifestado visivelmente.

 

Memorial: como é chamada a celebração da páscoa judaica, ressaltando a intervenção de Deus na história, é uma memória encarnada, uma experiência que não passa;

 

Celebração: expressa o mistério em ação ritual, ato comunicativo que envolve todo nosso ser, tato, olhar, paladar, audição, visão. É a manifestação e atualização do mistério que assim nos toca e transforma.

 

2 – O CULTO NO NOVO TESTAMENTO

A Igreja apostólica nasce no sulco do judaísmo, em cujo ambiente dá os primeirospassos. Cristo e os seus discípulos participaram do culto judaico, mas tomaram consciência do que deveria dar continuidade ao AT e do que deveria ser novidade daexperiência cristã. Com efeito as gerações das primeiras comunidades cristãs foram ummodelo e fator de identificação para as sucessivas gerações no âmbito da liturgia e de outras dimensões da vida cristã.

 

A Igreja apostólica está em sintonia com as raízes judaicas. A partir da base judaica ela vai criando novas formas de culto. É preciso recordar aquia íntima conexão entre liturgia e Escritura nos primórdios da experiência cristã. Não bastadizer que a Bíblia foi o primeiro livro litúrgico da comunidade a inspirar a pregação e aprece; falta acrescentar que o culto comunitário teve um notável papel na própria gestaçãodo NT.

 

A liturgia comunitária e de maneira fundamental, a refeição cristã, foram o lugarpor excelência (não o único) de cristalização das tradições evangélicas. Isto é visível na descrição dos ritos divinos acompanhado com orações e algumas cerimônias, que conheciam do templo judaico. O próprio Salvador tinha empregado antigos e novos ritos; pois tinha preparado a primeira consagração eucarística com o rito da páscoa antiga. Esta ordem conservou-se nas duas partes da missa: a Missa dos catecúmenos e a Missa dos fiéis. Na primeira havia orações e leituras da Sagrada Escritura, na segunda a consagração; divisão esta que se encontra desde o princípio do cristianismo. É muito provável que os ritos comuns a todas as liturgias tenham por autores os apóstolos e isto faz parte da Tradição da Igreja, pois São Basílio (+ 379) diz que os ritos litúrgicos, usados por toda parte e cujo autor é “desconhecido”, nasceram da autoridade dos apóstolos.

 

A Teologia de Santo Tomás de Aquino nos diz que é provável que a primeira Missa rezada pelos apóstolos ocorreu no próprio dia de Pentecostes; pois a Missa é a parte essencial do culto da Igreja, que neste dia começou a desempenhar as funções sagradas. O santo doutor afirma: “Celebramos a instituição do Santíssimo Sacramento especialmente naquele tempo, em que o Espírito Santo ensinou os corações dos discípulos a conhecer perfeitamente os mistérios deste sacramento. Pois também no mesmo tempo foi que os fiéis começaram a receber este sacramento[1].

 

Bento XIV[2]cita a opinião do cardeal Bona, de que antes de Pentecostes não se podia propriamente rezar a Missa, pois não convinha oferecer o novo sacrifício, enquanto o sacerdócio ainda não fora transferido. Concorda com isto a Escritura Sagrada. Pois diz que os apóstolos antes da vinda do Espírito Santo perseveraram unânimes em oração (cf. At 1,14), sem mencionar a comunhão do pão, por não haver ainda a Missa. Tendo recebido o Espírito Santo, então aparece a perseverança no amor, na doutrina e na oração em torno da “fração do pão” (At 2, 42).

 

Podemos dizer então que a liturgia cristã é, de certa forma, a continuidade da liturgia hebraica, agora transformada a partir de dentro graças à novidade de Cristo. Os dois elementos centrais da liturgia cristã atestam essa herança:

 

  • A liturgia da Palavra -é herdeira da liturgia sinagogal;
  • A liturgia eucarística – é devedora das orações de louvor e ação de graças típicas da piedade hebraica, tanto que o nome dado a essas orações –berakah, passou à liturgia em grego, “eucaristia”, ação de graças. Isso sem contar a noção de ano litúrgico, a estrutura da oração cotidiana, gestos e termos.

 

Mas além dos elementos de continuidade, há também rupturas. Exemplos: o dia litúrgico agora é o domingo, os sacrifícios do templo foram superados, a circuncisão já não é importante.

 

Nessa época, a liturgia era celebrada nas casas, em meio à refeição, e não havia livros litúrgicos: a partir da mentalidade comum da berakah, simplesmente improvisa-se, preenchendo-a de sentido cristão, dando origem à oração eucarística e isto fica evidente nos escritos neotestamentários (cf.At 20,1-7; 1 Cor 11).

 

Neste período identificamos três grandes características da ação litúrgica da Igreja nascente, que são as bases da ação litúrgica durante os séculos:

 

  • Escatológica, pois sempre remete à vida eterna, junto de Deus;
  • Pneumatológica, porque é o Espírito Santo que reúne a assembleia e a torna, de fato, uma assembleia de culto;
  • Cristológica, já que o centro do culto é a confissão do querigma da fé cristã.

 

3 – A LITURGIA NA ERA DOS MÁRTIRES(Séculos II – III)

A época pós-apostólica imediata foi um período de transição e de busca. A Igreja, que submerge suas raízes no judaísmo, vai adentrando progressivamente no mundo greco-latino. Entre os anos 70 e 140 o cristianismo se estende em diversas regiões e as comunidades cristãs se afirmam de forma única e original, porém nesse primeiro período, o desenvolvimento é mais internodo que externo. Permanecem ainda as formas do pensamento judeu-cristão e o centro de gravidade da discussão teológica continua a ser a polêmica com o judaísmo.

 

Nas fronteiras entre judaísmo e cristianismo, multiplicam-se as seitas gnósticas, que praticam um sincretismo religioso que combina o dualismo oriental com alguns elementos da revelação cristã. O cristianismo nascente encontrou no gnosticismo um perigoso inimigo que a partir do interior de suas próprias comunidades, ameaçava a identidade cristã. Muito cedo, as comunidades cristãs que se estendem atraem a atenção do ambiente pagão e suscitam uma atitude de repulsa, que não se produz, por exemplo, contra outros cultos religiosos trazidos do Oriente.

 

No final do século II e o começo do III se inicia um período em que a Igreja nascente chegará a ser a grande Igreja ou Igreja universal, em sua estrutura interna e em sua expansão externa. Liberto do seu contexto judaico, o cristianismo se difunde por todo o mundo greco-romano. A nova situação implica não só em obstáculos a evitar, como também em novas tarefas. Os cristãos procuram infundir um novo espírito aos usos e costumes da sociedade; mas apresentam a si mesmos o problema de saber o que devem conservar e o que rechaçar desse universo cultural.

 

No século II, há dois longos períodos de paz entre perseguições, os quais possibilitam uma forte ação evangelizadora e uma notável firmeza em sua própria organização interna, o que se reflete nas formas de culto, na reflexão teológica e nas expressões literárias e artísticas, cada vez mais ricas.

 

Só a partir do século III os costumes de cada comunidade começam a se consolidar, em um processo que no século V fixará as famílias litúrgicas que conhecemos hoje. O fim das perseguições aos cristãos por parte do Império Romano a partir de 313, ajuda nesse processo, em que os ritos saem das casas e catacumbas e vão para as basílicas e o domingo é estabelecido como dia de repouso. Formam-se, então, os rituais, com a fixação de orações, hinos e gestos em determinados momentos da celebração, de forma mais incrementada e organizada.

 

Toda essa estruturação se dá em Roma, num estilo próprio dos cristãos dessa cidade. O rito romano tem, assim, uma índole bem clara de sobriedade, concisão e praticidade: uma nobre simplicidade. Ao lado da diversidade ministerial, esse estilo reflete a índole comunitária da Igreja de Roma, ao se afastar do subjetivismo

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BOROBIO, Dionisio. A Celebração na Igreja. v1. Loyola, São Paulo, 1990

AUGÉ, Matias. Liturgia. 3ed. Editora Ave-Maria. São Paulo:2007

REUS, Pe. João Batista. Curso de Liturgia

CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA. 2ª. ed. Petrópolis: Vozes; São Paulo: Paulinas, Loyola, Ave-Maria, 1993

[1](Opúsc. 57, II die infra oct. Corp. Chr.)

[2](Inst. 21. n. 13; Festa Dom. c. 11, n. 42)