PLANO DE ESTUDO
– O culto cristão na Igreja do Império
– Gregório Magno
– Gregório VII
O Culto cristão na Igreja do Império (313-590) – De Constantino a Gregório Magno
Depois do Edito de Milão a Igreja teve diante de si a imensa tarefa evangelizadora de transformar o mundo pagão em um mundo cristão. A nova situação trouxe benefícios e problemas. A liberdade e a tranquilidade de que agora goza influem na qualidade de seus numerosos adeptos. São abundantes as infiltrações do paganismo na base e as intromissões políticas nos dirigentes da Igreja. Além das esplêndidas “basílicas”, construídas sobretudo com a ajuda do Imperador e de membros da sua família, os Bispos são equiparados aos mais altos funcionários do Império.
É imposta a celebração do domingo, protegida pela lei do Estado. Na segunda parte do séc. IV delineia-se a estrutura definitiva do ano litúrgico, com o ciclo pascal e natalício. Os formulários litúrgicos começaram a ser redigidos na segunda metade do séc. IV (350) e vão até pelo fim do século VII (680). Muitas fórmulas começaram a aparecer. Algumas até com falhas. Santo Agostinho, pelo fim do séc. IV, se admira de que até bispos usavam fórmulas de orações escritas por autores incompetentes e até heréticos.
Com o fim das perseguições, os mártires da fé se tornam objeto de atenção especial e de veneração. Por volta da metade do séc. II, a comunidade de Esmirna, na Ásia Menor, já celebrava a memória anual do seu Bispo, o mártir São Policarpo.
Neste período vemos o florescer e a rápida expansão do monacato. Esta instituição vem, em certa medida, substituir o martírio da época precedente. Numa Igreja favorecida pelos privilégios imperiais, há a nostalgia do combate e da valentia heróica das épocas de perseguição por causa do Senhor. A “fuga do mundo” procura suprir, com renúncia e mortificação, a entrega do martírio; como explicarão mais tarde os monges irlandeses, o martírio branco substituiu o martírio vermelho.
As empreitadas missionárias e as peregrinações constituem um dos fatores da evolução da liturgia neste período. O famoso Diário de Viagem da peregrina Egéria (381-384) é um testemunho de grande riqueza para a investigação litúrgica desses séculos.
Durante mais de três séculos, a liturgia de Roma foi celebrada em grego. A latinização da Igreja de Roma realizou-se de maneira progressiva, passando necessariamente por uma época de bilinguismo. A passagem do grego para o latim viria a ser efetuada no pontificado do papa São Dâmaso (366-384). Até o século XX ela permaneceria no latim.
Durante o período que vai do séc. VI ao VIII, as liturgias latinas apresentam-se regionalmente diversificadas, não tendo ainda a liturgia de Roma a predominância que adquiriria nos períodos seguintes. Os Santos Padres, como Santo Agostinho e São Gregório Magno, tem consciência das diferenças litúrgicas e afirmam que estas não quebram a unidade da fé.
De Gregório Magno a Gregório VII – (590 –1073)
Gregório Magno
Nobre e solidamente formado nas artes e no direito, eleito prefeito de Roma, renuncia e torna-se monge. Eleito bispo, desenvolveu uma ação pastoral muito atenta à psicologia e às necessidades do povo. Deu muita importância à liturgia como meio de catequizar o povo, como manifestam suas homilias. Desejoso de que toda a liturgia servisse de fato de alimento espiritual para aquele povo simples e inculto, realizou com grande liberdade uma profunda renovação litúrgica, orientada para esta finalidade pastoral. Realizou diversas reformas no lecionário, no sacramentário e no antifonário. Na área do canto e da expressão musical, reforçou a scholacantorum, e com isso, o lado espetacular da liturgia cara ao povo. Situada entre o presbitério e o povo, a schola serve de ponte entre os fiéis e o sacerdote. A obra litúrgica de Gregório Magno, pensada e organizada para o povo de Roma, também teve êxito fora dela. Diante disso, ele manifesta um grande espírito de liberdade no que toca à inculturação e adaptação. Respondendo à Agostinho de Cantuária, enviado para evangelizar a Inglaterra, que expressa sua dúvida acerca do que seguir, pois constata “que, sendo uma mesma fé, não obstante são diferentes os costumes, e uma é a organização da missa na Igreja romana e outra diferente nas Igrejas da Gália”, ele diz:
“Tem sempre presente a tradição da Igreja Romana, na qual foste educado, e ama-a sempre. Mas a mim me agrada que, se encontras na Igreja Romana, ou nas da Gália, ou em qualquer outra, alguma coisa que possa agradar mais a Deus onipotente tu a recolhas com todo o cuidado e o leves à Igreja da Inglaterra, ainda tão jovem na fé, juntando tudo quanto hajas podido reunir das diversas Igrejas. Pois tens de amar, não as coisas pelos lugares, mas os lugares pelas coisas boas que há neles. Assim, pois, escolhe de cada Igreja o que é de piedoso, de religioso e de reto e, tendo tudo isso reunido como num ramalhete, oferece-o como tradição à mente dos ingleses”.
Na história da Igreja, é o período em que o cristianismo se propaga por toda a Europa. Nestes quatro séculos, as transformações são lentas no Ocidente e em quase todos os níveis assistimos a uma espécie de “hibernação”; a história do papado nunca foi tão obscura como nos séculos VII-X; é talvez o período em que a Europa teve menor relevância no universo. E no entanto, esses séculos mostram ser uma fecunda gestação para o futuro da Igreja.
Nos séculos VII-VIII, há uma grande influência de orientais fugitivos para a Itália; o domínio oriental afeta profundamente a vida eclesiástica, de maneira que sete papas orientais ascendem à sede de Pedro entre os anos 642-752. A liturgia romana recebe neste momento o impacto das influências orientais: a introdução na missa do Agnus Dei, a adoração da cruz na sexta-feira e a aceitação das festas marianas (Assunção, Natividade, Purificação e Anunciação). No séc. IX, a situação romana chegou a ser deplorável em muitos aspectos, incluindo aí a liturgia. A vida litúrgica estava ameaçada de morte.
Neste período acontece o progressivo afastamento entre o povo e a ação litúrgica. O latim era a língua sagrada que envolvia o mistério litúrgico, mas tornava-o cada vez mais distante do povo. A partir do séc. VI, generaliza-se o batismo de crianças. A iniciação cristã, que em épocas anteriores fora objeto de celebração solene e comprometida de toda a comunidade, em datas relevantes do ano litúrgico (Páscoa, Pentecostes), passará paulatinamente a ser um assunto individual ou familiar. A instituição penitencial não-reiterável é substituída por uma nova disciplina penitencial. Surgem os “livros com suas tarifas penitenciais, esvaziando o sacramento de toda sua dimensão comunitária. O exemplo mais evidente do distanciamento entre o culto e a comunidade é a aparição da Missa privada, celebrada apenas pelo padre. Esta prática surge no séc. VI e se generaliza no séc. VIII.
Neste momento crítico, a Igreja franco-germânica salva a liturgia romana. No ano 754, Pepino, o Breve, decreta a adoção da liturgia romana em todo o Império Franco. Os motivos dessa introdução da liturgia romana: politicamente buscava-se uma unidade mais profunda de todo o Império por meio de uma liturgia única e uniforme e combatiam-se as liturgias regionais, especialmente a gálica.
O rito romano, usado só em Roma e arredores, vem a ser com Carlos Magno[1] o Rito usado em quase todo o ocidente. Movido pelo apreço que tinha pela liturgia e considerando-se custódio da doutrina e defensor da fé cristã, por volta do ano 783 pediu ao Papa Adriano I um sacramentário autenticamente romano. Ele tinha a ideia de unificar o Reino no seu culto. No entanto, alguns lugares conservaram seus ritos como Milão (Ambrosiano), Aquiléia, Ravena, Gália, Espanha. Da época carolíngea até São Gregório VII, acontece o deslocamento do centro de vitalidade da liturgia romana de Roma à sede da corte imperial, dos carolíngeos e posteriormente dos otonianos. A divisão do império franco a partir do séc. IX terá, como consequência, desenvolvimentos litúrgicos divergentes entre a parte oriental e a parte ocidental do império.
Na história da Europa, esse período que vai da morte de São Bento (548) à de São Bernardo (1156) costuma ser chamado “era monástica” ou “séculos beneditinos”. A fundação de Cluny, em 909, terá uma excepcional importância na renovação monástica dos séculos X-XI, chegando a ser, ao longo do século XI, o centro espiritual da cristandade. Cluny vai difundir sua liturgia nos mosteiros que dele dependem e estará na origem de uma liturgia menos ligada às Igrejas diocesanas. Neste período multiplicam-se as ordens religiosas de monges e cônegos regulares (cistercienses, cartuchos), cuja liturgia está ligada à comunidade-mãe.
Os séculos IX e XI viveram uma forte controvérsia sobre o modo de explicar a presença real de Cristo na Eucaristia. Acentuou-se a tensão entre o “realismo” e o “simbolismo”. Pascásio de Radberto (Monge de Corbie), no seu tratado sobre a Eucaristia[2], exagera no realismo da presença de Cristo na Eucaristia afirmando que: “O corpo de Cristo presente na Eucaristia é o corpo mesmo que nasceu de Maria. É a carne física de Cristo que vem como que velada sob as aparências do pão e do vinho. As aparências do pão e do vinho são como que um envelope que escondem a carne e o sangue reais. Se fosse possível tirar este envelope a carne o e sangue de Cristo apareceriam na sua consistência natural”. Ele diz que na comunhão recebemos a natureza humana e divina de Cristo e pelo metabolismo natural da digestão, ele é assimilado e se transforma em carne e sangue do fiel.
Este exagero encontra imediatamente reação da parte de um outro monge do mesmo mosteiro chamado Retramno, mas a reação mais forte veio no século XI, com Berengário de Tours, que nega categoricamente a presença de Cristo na Eucaristia, dizendo que ela é uma simples representação, uma simples figura de Cristo, deslanchando assim, um movimento teológico de notável importância na Idade Média e até os dias de hoje. Negando a presença real de Cristo na Eucaristia, ele não é somente considerado como herético, mas como heresiarca, chefe de uma escola que se perpetua no tempo. Em 1059, no sínodo romano foi imposto a professiofidei a Berengário, que dois séculos depois foram consideradas excessivamente “sensualistas” e criticáveis por São Boaventura e São Tomás de Aquino.
Toda esta controvérsia distanciou cada vez mais o povo da Eucaristia, chegando ao ponto de não comungarem mais. A Eucaristia, de alimento, passa a ser unicamente objeto de adoração; o altar, de mesa de refeição sagrada passa a ser unicamente “altar de sacrifício”; o padre, de pastor e presidente da celebração da Eucaristia, passa a ser somente “sacrificador de Cristo” e único com dignidade para receber o Cristo eucarístico. No IV Concílio de Latrão (1215), a Igreja se viu obrigada a introduzir a lei de que cada cristão deveria ao menos comungar uma vez no ano.
Da reforma gregoriana (1073-1085) até o Concílio de Trento (1546-1563)
Superada a decadência e a perda de importância sofrida por Roma no séc. X, os papas voltam a assumir as rédeas da liturgia romana, após três séculos. A partir de Gregório VII e da reforma da liturgia da Igreja latina da qual ele foi o principal instigador, a unidade litúrgica realizada por Carlos Magno em seu império é erigida em princípio eclesiológico e os papas se reconhecem como responsáveis em termos de decisões litúrgicas por todas as Igrejas[3].
Gregório VII, em sua reforma litúrgica teve também como perspectiva a moralização do clero. Neste contexto explica-se o específico interesse pela liturgia, interpretada, porém, como atividade própria e quase exclusiva do ministério sacerdotal. A liturgia em verdade, exige, de quem tem o dever de presidi-la, dignidade e coerência de vida.
A retaguarda eclesiológica de toda a reforma gregoriana tem características hierárquicas e ao mesmo tempo jurídicas. Os fiéis tinham se afastado pouco a pouco da liturgia clericalizada de maneira muito profunda. Gregório VII não se propõe a diminuir a preponderância clerical da liturgia nem a tornar mais fácil sua compreensão. Os objetivos que ele tem são: aumentar o apreço pelo sacerdócio; cultivar o sentido do mistério diante da ação litúrgica e abrir espaços para as devoções, ainda que sob a roupagem litúrgica.
Os ideais de unidade litúrgica do Ocidente, cultivados por Gregório VII, se consolidam nos séculos seguintes pela atuação de outros papas, como por exemplo Inocêncio III (1198-1216), que se empenha na reforma dos livros litúrgicos. O sacerdote vem a ser o único verdadeiro ator, enquanto os fiéis assistem passivamente. Para ser mais prático, evitando o incômodo de vários livros litúrgicos ao mesmo tempo (Sacramentário, Lecionário, Antifonário, etc.), ele resolveu juntá-los num livro só, chamando-o de Missal Pleno (que foi amplamente difundido por toda a Europa pelos pregadores itinerantes da recém fundada Ordem dos Frades Menores (franciscana). Este Missal era próprio para ser usado pelos padres nas missas privadas e tarifadas que neste tempo se tornaram de uso comum. A Santa Missa como benefício para vivos e mortos torna-se o tema fundamental da pregação sobre a Missa, enumerando-se os frutos dela obtidos, mesmo com a mera assistência. Esses “frutos da Missa” adquirem um perfil cada vez mais materializado, como a multiplicação de missas votivas, as missas gregorianas, aumentando desmesuradamente o número de “altaristas”, um proletariado clerical (de baixa qualidade) que vive praticamente de salários. No final do séc. XV, Breslau, tinha para duas Igrejas 236 padres altaristas! Isso tudo incorreu em sérios abusos. Já no séc. XII, Pedro Cantor advertia: “Fazem falta menos igrejas, menos altares, menos sacerdotes, mas melhor escolhidos”. Isto acarreta uma multiplicação desmesurada de altares laterais dentro das Igrejas. Em torno do ano 1500, certas catedrais possuíam mais de 40 altares. Não faltaram reações e resistências em relação ao predomínio das missas privadas. Destaca-se a exortação feita por Francisco de Assis aos seus frades: “Advirto os meus irmãos e exorto-os no Senhor que, nos lugares onde moram, seja celebrada uma só missa por dia, segundo a forma da Santa Igreja. E se houver vários sacerdotes no lugar, contente-se um sacerdote, por amor à caridade, com ouvir a missa do outro”[4].
É o período em que o povo não comunga mais. Se contenta em ver a Eucaristia. Os padres adotam o costume de elevar a hóstia (1200 – Paris). O que antes era assembleia, caridade, sacrifício e comunhão, se reduz em adoração das espécies eucarísticas. De modo semelhante, Corpus Christi se converte na festa mais importante do ano litúrgico, solenemente superior até mesmo à Páscoa.
A liturgia no “outono da Idade Média”. O século que se situa entre dois Concílios ecumênicos, o de Vienne na França (1311-1312) e o de Constância (1414-1418), marca a manifestação progressiva de uma acentuada decadência da vida e da espiritualidade litúrgicas. O fato não deve surpreender se considerarmos os efeitos desastrosos naquele século do exílio de Avinhão (1305-1377) e do cisma ocidental. Verifica-se uma separação, considerada providencial para alguns, entre hierarquia e fiéis: a primeira voltada para uma vida mundana e os outros abrigados numa ardente piedade popular.
BOROBIO, Dionísio. A Celebração na Igreja. v1. Loyola, São Paulo, 1990
[1]Coroado imperador do Império Franco-germânico, no ano 800.
[2]De corpore et sanguineDomini, em torno de 831-833.
[3]Direito de canonização (Alexandre III e Inocêncio III). Direito de instituição de festas, como: Corpus Christi (Urbano IV – 1264).
[4]Carta a toda a Ordem 30-31.