Recebendo de Deus

 

 

 

 

 

 

 

 

Vamos estudar a parábola do Bom Samaritano, seguindo as sapientíssimas lições de um monge medieval, Hugo de São Victor, que viveu no século XII na Abadia de São Victor, em Paris. Para entender esta parábola precisamos estabelecer alguns pontos de conhecimento:

 

  1. O que significa Jerusalém? Jerusalém, literalmente, significa cidade da paz, ou visão da paz (cf. São Tomás comentando Marcos 11, 1-10, na Catena Áurea). Jerusalém é a cidade santa, mãe de todos os crentes (cf. Gl 4, 26) de onde vinha toda a luz da verdade para o mundo (cf. Sl 87). E a luz da verdade vem de Jesus, que é o Sol da Justiça (cf. Lc 1, 78-79; Jo 1, 9). Portanto, Jerusalém significa, como o sol, a imutabilidade da verdade e a estabilidade trazida pela paz;

 

  1. O que significa Jericó? Jericó significa lua (cf. São Tomás comentando Marcos 10, 46-52, na Catena Áurea), e, portanto instabilidade, conforme se pode observar pelos diferentes aspectos da lua em seu ciclo. Se Jerusalém é o sol estável e perene em sua força e luz, representando, assim, o céu e sua justiça, então Jericó, no vale da morte, representa o vale de lágrimas, a cidade da mutabilidade e do pecado. Por isso foi dito: “Quem tentar construir de novo esta cidade de Jericó será amaldiçoado pelo SENHOR! Quem puser os alicerces perderá o filho mais velho! Quem colocar os portões perderá o filho mais moço!” (Js 6, 26). Profecia que se cumpriu (cf. I Rs 16, 34);

 

  1. O que significa descer? De fato, para ir de Jerusalém a Jericó se desce, pois Jerusalém situa-se a 2.000 metros de altitude, e Jericó, junto ao Mar Morto, está a 250 metros abaixo do nível do mar. Descer de Jerusalém a Jericó é passar da virtude ao vício, da santidade ao pecado, do Éden ao vale de lágrimas. Se descer de Jerusalém a Jericó é sinal de corrupção, subir de uma para a outra é sinal de conversão;

 

  1. Quem é esse homem que descia pelo caminho de Jerusalém a Jericó? Esse homem era Adão, que fez o caminho contrário à ordem divina e acabou expulso do paraíso (cf. Gn 3), trilhando a partir daí um caminho íngreme e duro, descendo cada vez mais para o vale de lágrimas deste mundo, levando toda a humanidade no seu seguimento (cf. Rm 5, 12), quer dizer, toda a história humana.

 

Aconteceu que o homem foi assaltado pelo demônio, que o largou ferido e chagado, como morto (cf. Jo 8, 44), pois quando Adão pecou este lhe roubou todos os dons com que Deus o adornara ao criá-lo à Sua imagem e semelhança: a graça santificante, os dons sobrenaturais e os dons naturais, a imortalidade e a ciência infusa. O “ladrão” o largou como morto, inclinado ao erro e ao pecado, atraído pela mentira, pelo mal e pelo feio (cf. Ef 2, 1-2).

 

Na continuação da parábola, Jesus diz que um sacerdote judeu descia também de Jerusalém a Jericó… Isto é assim posto porque o Senhor Jesus mostra a incapacidade da primeira aliança (AT) e da lei em resolver a queda humana (cf. Rm 3, 21-26). Mostra ainda que estas haviam sido criadas por Deus no judaísmo para este fim, mas corromperam-se com este mundo e passaram da perenidade do sol para a instabilidade da lua, deixando a solidez do amor divino para apoiar-se nas frágeis e manipuláveis leis humanas (cf. Mt 15, 1-9).

Também passou por ali um levita, homem da tribo sacerdotal, nada preocupado em cuidar do homem. Como um aluno candidato ao sacerdócio judaico representava a continuidade do erro e não a renovação necessária que só viria com o “Bom Samaritano”.

 

Os samaritanos eram desprezados pelos judeus zelosos porque eram de origem mestiça (mistura de israelitas com assírios), além disto, eram provenientes do cisma das dez tribos de Israel, que os levou a uma separação política e religiosa, de forma que aceitavam das Escrituras apenas o Pentateuco. Por tudo isso, eram desprezados e tidos como hereges. O samaritano, como mestiço, tinha como que duas naturezas: a de israelita e a de assírio. Desse modo o samaritano simbolizava a Jesus Cristo que tinha duas naturezas, a divina, pois era o Verbo de Deus, e a humana, pois descendia de Davi.

 

O bom samaritano cuidou do homem, como Cristo curou as chagas de Adão, lavando seus ferimentos com vinho e azeite. Por que vinho e azeite? Com vinho, pois contém álcool, que faz arder os ferimentos, desinfetando-os. Com azeite, pois o azeite isola do ar as feridas, impedindo que causem ardor.

 

Assim também a cura do homem só poderia vir pela dor causada na cruz sobre a alma e o corpo do Divino Redentor, que na Última Ceia instituiu a consagração do vinho como sinal da Nova Aliança no Seu sangue. Porém, as chagas abertas que devem causar ao pecador espanto e horror frente ao pecado, não deve levá-lo ao desespero, mas, depois deste impacto, precisa da consolação que é dada pelo Espírito, o Consolador (cf. Jo 14, 16). Por isso a Igreja nasceu da cruz e de Pentecostes. No Calvário, brotou das chagas abertas para dentro do coração dos pecadores; no Cenáculo, brotou dos corações arrependidos para o mundo incrédulo, abrindo-lhe a via de salvação. Todos precisam dessa experiência, sem a qual permanecemos prostrados no caminho, sem assumir a dignidade elevada de filhos de Deus.

 

A seguir, o bom samaritano colocou o homem ferido sobre sua montaria, que podemos deduzir ser um jumento (cf. II Cro 28, 15) e o levou até uma hospedaria. Lembremo-nos que Jesus quis entrar em Jerusalém utilizando-se de um jumentinho que nunca fora montado (cf. Mt 21, 7), isto é, o povo pagão simbolizado biblicamente neste animal, pois a salvação é para o judeu e o pagão (cf. Rm 11, 11-12).

 

Por que levou o homem ferido – Adão – a uma hospedaria? Porque a hospedaria é símbolo da Igreja.

Na hospedaria se recebe as pessoas para que repousem da viagem, se alimentem, refaçam suas forças e sigam o caminho. Essa hospedaria que é a comunidade cristã oferece ao pecador, no caminho da história, o alento da proteção da noite (cf. I Ts 5, 4-8), o repouso da Nova Aliança (cf. Hb 4, 9-11) o alimento da sã doutrina (cf. I Tm 3, 15). Cada resgatado (= batizado) é assim equipado para a jornada da vida até que chegue ao seu lugar de origem, a Jerusalém celestial (cf. Cl 3, 1-4; Ap 21, 9 ao 22, 5). Por isso o homem caído é aí depositado para que reverta seu caminho de Jerusalém à Jericó, para regressar à Jerusalém. Essa reversão na estrada é o que se chama conversão.

 

O bom samaritano mandou ao dono da hospedaria que cuidasse do homem, para isso deu-lhe duas moedas. Ora, se a hospedaria é a Igreja, o seu dono é o Papa, que recebeu de Cristo o mandato de cuidar do homem ferido pelo pecado original (cf. Mt 16, 18). E por que foram dadas ao Papa duas moedas? Porque confiou o Senhor ao Seu administrador dois dons preciosos, por meio dos quais mantém a Igreja provida de recursos para socorrer os peregrinos no caminho do céu (cf. Mt 24, 45). Os Atos dos Apóstolos explicam quais são esses dois recursos: a ORAÇÃO e o ANÚNCIO DA PALAVRA (cf. At 6, 2-4).

 

O Sumo Pontífice foi encarregado de motivar as ovelhas do rebanho de Cristo (cf. Jo 21, 15-17), e isto tem sido feito à Igreja em todos os tempos, mas atualmente ainda mais porque é preciso considerar o sinal de nossos dias. O Santo Padre, e os bispos em comunhão com ele, têm motivado toda a Igreja a fazer uso desses dois dons para socorrer o homem caído, e por esta razão, depois do Concílio Vaticano II, o Senhor tem feito surgir inúmeras iniciativas pastorais laicas e ainda mais as Novas Comunidades, dotando-os desses dons novamente com renovado ardor, linguagem e métodos, para os desafios de nosso tempo.

 

Nossa comunidade, por exemplo, sente em seu carisma, um chamado muito particular a se dedicar a esses recursos com todas as suas forças; por esta razão, não compreende sua missão senão partindo de uma contemplação orante da Palavra por meio da lectio divina e da adoração eucarística, anunciar esta mesma Palavra por meio de grupos de relacionamentos cristãos que façam novos discípulos missionários.

 

Ainda mais é necessário se investir nisso de tal forma que, todos se dediquem fortemente no uso desses dois dons, ainda que alguns se dediquem mais a um, enquanto outros se dedicam mais a outro. Desta forma, recebemos de Deus graça sobre graça, ou seja, um carisma para fazer uso de dons, e assim cumprir a missão em nossos dias, fazendo o que o Senhor Jesus ordenou por último ao mestre da lei, após fazê-lo descobrir quem era o seu próximo; e esta é a chave da parábola.

 

Jesus contou esta parábola porque o mestre da lei o inquiriu da seguinte forma: “Mas quem é o meu próximo?” (v. 29). Ao final da parábola nosso Senhor fez também uma pergunta ao mestre da Lei: “Na sua opinião, qual desses três foi o próximo do homem assaltado?” (v. 36); está exatamente aqui a chave desta parábola, pois comparando esta pergunta àquela que deu início à história vemos que o centro da questão é o homem caído e a figura chave o próximo dele, assim, Jesus colocou o mestre da lei na condição do assaltado e o faz perceber que o seu próximo é primeiramente aquele que o ajuda, o Bom Samaritano da parábola (que é o próprio Jesus).

 

Ao mandá-lo fazer o mesmo, primeiramente o Senhor o orienta a deixar-se curar pela Nova Aliança, e estando na hospedaria que é a Igreja, poderá, assim, em nome de Jesus, ajudar aos outros que também estão caídos no pecado.

 

Nós somos, no âmbito de nosso carisma, comunidade eclesial, e na Igreja una, também hóspedes e hospedeiros. Recebemos de Deus uma graça e precisamos nos dedicar a ela; assim, e somente assim, faremos aos outros o que o Senhor tem feito por nós. Descobriremos quão próximo o Senhor Se fez de nós para nos fazer instrumentos em Suas divinas mãos.

 

Por Sandro F. Peres – Moderador Geral