“Tomou em seguida o pão e depois de ter dado graças, partiu-o e deu-lho, dizendo: Isto é o meu corpo, que é dado por vós; fazei isto em memória de mim.Do mesmo modo tomou também o cálice, depois de cear, dizendo: Este cálice é a Nova Aliança em meu sangue, que é derramado por vós” (Lc 22, 19-20)
Uma das dimensões fundamentais e mais evidentes do ser humano é a vida.
Algo fundamental e essencial para que ela se desenvolva e se mantenha é a qualificada alimentação cotidiana. O alimento é a fonte de vida, de força: possibilita a sobrevivência impulsionando-a. O ser humano assimila os alimentos – parte do cosmos, da natureza -, digere-os e os converte em parte de si mesmo. A busca de se nutrir, renovar as energias e tomar novo impulso para a vida é essencial na condição humana.
A alimentação e a comensalidade são elementos fundamentais para a vida. Comer compartilhando do mesmo alimento e da mesma mesa, em companhia de outras pessoas, é um dos momentos mais expressivos das relações humanas. Enquanto o alimento é força para o corpo, a comensalidade e a partilha nutrem o espírito e alimentam a necessidade que todos temos de estar juntos, expressando a alegria de conviver.
Assim sendo, a refeição à mesa carrega muito mais do que a necessidade de subsistência. A cada refeição, nos reunimos em torno de uma mesa comum onde é possível a partilha de vida, de histórias e de vivências humanas. É possível fazer memória de nossa história, de nossa herança, de nossos antepassados, atualizando no presente seus feitos e ditos passados. É possível recontar no presente o passado de nossa história.
A refeição é uma pequena festa cotidiana, pois é o momento em que se junta à alegria de comer e beber bem à volta da mesma mesa a alegria do encontro. É uma realidade humana cujo laço de amor tem suas origens nas primeiras refeições da criança com sua mãe. Além disso, o ser humano não come como os animais, cada um no seu canto. A amizade e o amor vêm humanizar esta realidade material.
Para o oriental, a refeição tomada em comum tem um significado ainda mais profundo. Ela significa algo mais do que uma simples reunião de amigos: convidar alguém para a própria mesa é sinal de paz, de confiança, de fraternidade, de perdão. Narrações bíblicas bem expressam tal consideração atribuída à refeição: a aliança entre Abimelec e Isaac (cf. Gn 26,30s), o contrato entre Labão e seu sobrinho Jacó (cf. Gn 31,54), a anistia ao último rei de Judá, Joaquim, concedida pelo rei da Babilônia, são fatos marcados pelo comer e beber em comum.
A partir da vida cotidiana, “ordinária” e de sua mesmice rotineira, surge a festa, um elemento de ruptura, um aspecto de exceção que a distingue na sucessão dos dias. O ordinário constitui aquilo que é organizado segundo certa ordem habitual, certa sequência ordenada de fatos e ações. O momento da festa quebra tal ordem habitual com um alcance afetivo e psíquico considerável. Há um momento de libertação das tensões, como a exorcizar e acalmar angústias e temores, expressar esperanças e para que transformações sejam feitas a fim de retornar ao ordinário do cotidiano da vida com a lembrança da festa passada e a expectativa da festa que está por vir.
O coração humano é maior do que os limites do cotidiano. Tem sede de uma felicidade que parece inacessível na terra. Tem o gosto do infinito, do universal, do eterno, de qualquer coisa que dê sentido à vida humana e ao cotidiano fastidioso. A festa é como um sinal desse além, que é o céu. É o símbolo daquilo a que a humanidade aspira: uma experiência de comunhão. Todas as civilizações humanas instituíram festas que perpassam o tempo.
Há uma dimensão extraordinária na festa coletiva que pode ser denominada utópica, se “utopia” for designada pelo fato de alguém se situar, pelo menos por poucos momentos, em um lugar totalmente diferente daquele em que se encontra em sua situação comum. Há um distanciamento em relação aos códigos e ritos que regem o sistema de relações e comunicações no grupo habitual, e, assim, surge um espaço transitório de liberdade. É este o significado bastante real da festa: é permissível a expansão das verdadeiras aspirações pessoais e coletivas, e assim, é possível reconstituir-se e reformular novamente a identidade primeira. O peso do cotidiano é, de repente, tirado e os corações saltam de alegria.
A festa exprime e torna presente, de modo palpável, a finalidade da vida comunitária e, como tal, estimula a esperança e dá nova força para retomar com mais vigor a vida cotidiana. É um momento de celebração com música, dança, cantos, frutos e flores da terra, oração, ação de graças e também, boa comida. A refeição de festa é importante, sendo um dos elementos de agregação, comunhão e partilha.
A refeição e a festa acabam finalmente por adquirir uma dimensão metafísica e um valor religioso. É assim que a história de amor entre Deus e os homens (os Patriarcas), depois entre Deus e um povo (Israel), e por fim, entre Deus e uma multidão de nações, é marcada por acontecimentos importantes que se tornaram objeto de narrativas transmitidas de geração em geração e são hoje um patrimônio para toda a humanidade. Conservadas na memória coletiva, deram origem a celebrações especiais, cuja origem é anterior ao acontecimento festejado e encontra sua raiz em tradições agrárias ancestrais.
A festa bíblica, porém, não se limita jamais a evocar a lembrança de um fato passado. Ela manifesta sempre a reatualização do dom que é anterior ao fato; é uma forma nova de beneficiar-se de uma graça fundamental e vital para todo o povo de Deus. Por exemplo, a ceia da páscoa é para os judeus sinal e celebração da salvação operada por Deus; ela se converteu no ponto máximo de referência para a teologia e espiritualidade judaicas, apresentando um resumo de sua fé e de seu culto. Quando um judeu celebra a Páscoa, ele tem consciência de viver aqui e agora uma libertação de fato.
Prolongando as festas judaicas, a liturgia cristã as vivenciou desde as origens como tempos extraordinários, permitindo a renovação de uma graça inicial. “Com essas festas, o povo de Israel e depois dele a Igreja conservaram suas riquezas, forjaram sua identidade e exprimiram sua fé, sempre voltando às raízes de suas revelações e à fonte de sua vida espiritual”. Assim, as festas da revelação judaico-cristã constituem um elemento essencial do contexto onde os personagens bíblicos evoluem e são colunas da vida litúrgica e espiritual daqueles que nos precederam na fé.
É este o pano de fundo para a liturgia cristã, momento privilegiado de celebração da vida, do amor de Deus, dos dons recebidos e das pessoas entre si. Celebrar é uma atividade humana, lúdica, gratuita, não utilitária onde é possível se manifestar e expressar sentidos mais profundos, sentimentos mais escondidos, conteúdos indizíveis como a aspiração eterna e a felicidade almejada, conforme apresentado anteriormente. O tempo e o comportamento são medidos de forma especial.
Celebrar, ainda, é participar, entrar em comunhão de forma nova com um grupo, já que não se celebra solitariamente, mas colocando em comum o objeto e a alegria da celebração. Esta é a especificidade e a riqueza da celebração cristã: algo de ‘extraordinário’ que remete à história divino-humana da Salvação. Por meio de símbolos, gestos e ritos, a celebração cristã é a expressão simbólica da presença de Deus na história humana, dando-lhe um sentido. É também um convite para a comunhão com esse mesmo Deus e com as demais pessoas reunidas, que assim realizam a Igreja, prolongamento histórico de Deus no mundo.
O ponto máximo da liturgia cristã é o mistério pascal de Cristo. Ao longo de toda sua vida, mas de forma especial no mistério de sua Paixão, Morte, Ressurreição e Ascensão, Jesus Cristo revela-nos o amor e a misericórdia do Pai. Este acontecimento é o motivo da alegria e da força da liturgia, de toda celebração litúrgica: o mistério pascal de Cristo é eterno, supera os limites de tempo e espaço – é para todos, é para sempre – “se mantém permanentemente presente […] permanece e atrai tudo para a vida”. Todos podem participar e ser associados à sua dinâmica salvadora.
Esta é a chave para a compreensão do rito religioso cristão (assim como no judaico): seu caráter é memorial, comemorativo. A ação simbólica – por meio de gestos, palavras, objetos, pessoas, repetições -, oferece uma relação com a realidade – divina e humana – de uma forma muito mais profunda do que qualquer outro modo e atende à capacidade simbólica humana de interpretar o mundo em que vive. O simbolismo religioso é a expressão mais íntima da necessidade de a pessoa humana ultrapassar os limites do próprio eu e abrir-se a novas experiências que dificilmente podem ser sistematizadas em nível racional.
Nesse sentido, a tensão dialética entre natural e sobrenatural, entre história e escatologia, entre imanência e transcendência encontra no simbolismo a possibilidade de sair de uma contradição fundamentalmente de concorrência para evoluir rumo a uma situação de efetiva e recíproca afirmação.
Referências:
AUGÉ, Matias. Liturgia – História, Celebração, Teologia, Espiritualidade. São Paulo: Ave Maria. 2007, p. 100.
BOROBIO, Dionisio. Celebrar para viver. Liturgia e sacramentos da Igreja. São Paulo: Loyola, 2009, p. 114.
VANIER, J. Comunidade, lugar do perdão e da festa. São Paulo: Paulinas, 2006, p. 274, 280.
Sérgio Luiz Barbosa
Consagrado da Comunidade Fanuel, Rosto de Deus.